PEQUENOS PODERES

Ilustração de Karol Banach

O que mais tem por aí é gente de pequenos poderes. Alguém que ganhou um crachá, um chapéu, uma chave, um balcão para se por atrás e aí, bum, se enche de poderes. Eles sabem que os poderes são pequenos, mas fingem que são bem grandões. São efêmeros também, além de pequenos. Saiu dali, tirou o crachá, o chapéu, deixou o balcão, puft, acabou o poder. O pequeno poder.

Dia desses encontrei um sujeito de pequenos poderes. É algo fácil de identificar. Gente de pequenos poderes tem uma determinada expressão. Um ar blasé de quem te vê como um inseto incômodo. Eles fazem cara de quem tem grandes poderes, já reparou? Coisa que quem realmente tem grandes poderes normalmente não faz. Já vi muita gente de grandes poderes que tem uma cara tranquila, relaxada. Mas o pessoal dos pequenos poderes não, parece que tem indigestão constante. E estão constipados. É comum serem tristes também.

Então, como eu dizia, dia desses encontrei um desses de pequenos poderes, o PP. Vamos chamá-lo assim, PP, de pequenos poderes. Foi bastante desagradável o PP. Era um rapaz. Baixinho, baixinho. Eu sou baixa e ele era mais baixo que eu. Gente pequena com pequenos poderes. Nossa, esses são um perigo. Compensam a falta de estatura abusando do papel de PP. Tinha as mãos pequenas e um tom de voz baixo (melhor, PP que grita é dose de aturar). Branquinho, branquinho. Um pálido meio morto-vivo. Meio esverdeado. Me olhou com bastante desprezo, e foi logo me acusando de não ter o que deveria ter (eu tinha), de estar onde não deveria estar (eu estava exatamente onde deveria).

Dei bom dia, com sorriso e tudo, não respondeu. Pensei “iiiiih, esse aí é daqueles”. E era. Nesse dia eu tinha na bolsa, além de celular, livro e carteira, minha paciência de Jó. Porque olha, vai por mim, se você decidir confrontar esse pessoal de pequenos poderes, você vai perder. Eles têm pequenos poderes, mas provavelmente têm naquele momento, só ali, naquela situação, mais poder do que você. Você é o cara do nenhum poder, e ele é o cara do pequeno poder. Percebe?

Voltando ao baixinho branquinho de mãos e poderes pequenos, ele foi logo ameaçando que eu não conseguiria fazer o que tinha ido fazer ali. Ele nem sabia o que era. Típico. Adivinhos é que não são, só gostam de falar muitos nãos que é pra você se sentir desesperançoso. Se conseguirem fazer você ir embora e parar de amolar, melhor. Mostrei uma pasta cheia de exatamente aquilo que eu precisava para aquilo que eu queria. Sorrindo. Não esqueça, sorriso e PJ (paciência de Jó). PP olhou a pasta, com certo desdém, mas olhou. Concluiu que não tinha onde encrencar, então, depois daquela humilhada prazeirosa, que faz todo PP se sentir GP (grandes poderes), PP me mandou sentar e esperar. Agradeci. Com sorriso. Sorriso e PJ pro PP achar que é GP e você conseguir o que precisa e sair dali. Sem dignidade, mas com aquilo que você precisa, que às vezes, é o que importa, certo?

Pensa assim: os PPs são um ótimo exercício de humildade. Não vale a pena peitar um PP. Seja humilde. Deixa o PP achar que é GP. O que é que tem? O que muda na sua vida? Você vai embora com tudo resolvido, e de quebra fez alguém feliz. Às vezes a única alegria daquela pessoa ali é brincar de ser GP sendo PP. Pô, deixa ela! Deixe o ego em casa, leve bastante PJ, capricha no sorriso e seja feliz. Deixa o PP lá. No fundo ele sabe que é um PP, tadinho. Pensa que frustração.

Neste dia, eu saí feliz por ter conseguido o que precisava, mesmo tendo que passar pelo crivo do PP baixinho, branquinho, de mãozinhas de T-Rex. Eu fui embora tomar sorvete de menta com chocolate. Ele ficou ali, o dia todo bancando o GP. Pensa que cansativo. Dia após dia se fazendo passar por algo que você não é.

Perto da porta da rua olhei para o pequenino PP, que me olhou de volta. Eu sorri até expor o último molar e bradei um “bom dia e obrigada” que chegou aos a 50 decibéis. Ali os pequenos poderes de PP não tinham mais validade, eu já conseguira o que precisava (percebe, a inversão de papéis? Delícia). PP faltou espumar pela boca. Eu livre, e ele ali, atrás do balcão, preso no papel de PP por mais um dia.

Da próxima vez que você se deparar com um PP, não se irrite. Não deixe a pequenez do PP tirar você do sério. Seja legal com o PP, mesmo que ele não seja legal com você. Seja você um GP, mas não de grandes poderes, de Grande Pessoa.

COMO ASSIM, POR EXEMPLO, MENTIRA?

Pinoquio

Há um tempão atrás eu assisti a um filme sem querer. Quem nunca assistiu a um filme sem querer? Num daqueles dias em que você está apertando botões do controle remoto em modo automático vagando por entre os canais da TV à cabo e acaba parando por motivo nenhum num filme qualquer. Maioria dos atores desconhecidos, produção medíocre… aquele tinha tudo para ser um filme bobo desses que a gente assiste quando precisa esvaziar a cabeça.

Eis que, contrariando todas as expectativas, no décimo minuto eu me encontrava interessadíssima na história. O filme retratava um mundo onde a mentira não existia. Simplesmente o conceito da mentira não existia. Ninguém mentia, ninguém sabia mentir, ninguém esperava que alguém mentisse, não havia nada parecido com o ato de dizer algo que não correspondesse à verdade. Em diversos momentos da trama, aquele mundo sem mentiras, para mim, era mais difícil de aceitar e compreender do que toda a bagunça que aquele pessoal fez na Terra Média perseguindo o tal do anel naquela trilogia multibilionária.

Meus pais me ensinaram desde pequena que mentir é feio. Aposto que a maioria dos pais fez o mesmo, e ainda assim, todos nós temos por natureza uma incrível capacidade pinoquística de dizer coisas que não são exatamente como dissemos que são. Nos abrigamos no conforto das ditas mentirinhas inofensivas, mentirinhas do bem, mentirinhas sociais. Será mesmo que ainda temos a capacidade de discernir  mentira necessária da mentira automática?

Quando será que foi que aprendemos a mentir, hein? Foi quando percebemos que dava certo? Que a gente podia se safar de um monte de encrenca se omitisse a verdade? O que seria das nossas vidas sem a emoção da incerteza se o outro está falando a verdade ou não? Somos pessoas mais fortes e espertas porque vivemos numa sociedade onde a todo instante você pode estar sendo vítima de uma mentira, seja ela séria ou boba, então é preciso ficar ligado? Somos mais sagazes porque já ludibriamos pessoas e a qualquer instante podemos ludibriar alguém de novo?

No filme em questão dá pra ver que o pessoal do mundo sem mentira é meio bobo. Ou seriam inocentes? A mentira fez com que a nossa sociedade seja o que é hoje? Não, não são retóricas, eu estou perguntando mesmo, porque, não vou mentir, eu não sei! Só o que eu sei é que fiquei pensando sobre o filme bastante tempo depois que o assisti. Comentei com amigos sobre o filme, penso no filme com uma incômoda frequência, a ponto de escrever sobre isso. Não pude deixar de viajar na hipótese de como seria viver não num mundo onde ninguém mente, mas num mundo onde ninguém sabe como mentir.

Recentemente assisti a um documentário médico sobre um paciente que, em função de um mal funcionamento de uma determinada área do seu cérebro, não podia dizer mentiras e havia perdido a habilidade comportar-se de forma socialmente aceita, ou seja, dizia o que lhe dava na telha sem se importar se aquilo era agressivo, mal educado, politicamente incorreto ou inadequado. Submeteram o cara a uma cirurgia com um famoso neurologista para corrigir o problema, mas ele morreu durante o procedimento com a tampa do escalpo aberta. Chocante. Ok, ok, não era exatamente um documentário… era uma série besta e dramática de TV. Não consigo mentir pra vocês!

Mas o que importa é que foram corrigir o comportamento do cara para ele voltar ao normal. Mas espera aí! Voltar ao normal significava falar não necessariamente a verdade, mas falar aquilo que o tornasse mais amigável e aceito socialmente? Isso é meio doido ou sou só eu que acho?

Virou normal pra gente dizer para aquela vizinha que voltou dos seis meses morando no Canadá, que ela não está gorda nem branca que nem parede, melhor isso do que magoá-la, certo? Virou normal pra gente dizer pro chefe que o trânsito estava horrível ao invés de dizer que dormimos mais 10 minutos porque estávamos precisando dormir mais dez minutos. Virou normal pra gente dizer que vai para lugares para onde não temos a menor intenção de ir. Virou normal dizermos que vamos ligar se nem temos o telefone do sujeito, que vamos combinar alguma coisa quando não vamos nem lembrar disso dali duas horas. Virou normal dizermos que somos aquilo que nem saberíamos ser se o tivéssemos que ser… até pra gente mesmo a gente mente! Não é verdade? É. Não mente pra mim! Agora com essa coisa toda de rede social a gente pode mentir descaradamente e ainda sair bem na foto! E ninguém vai te acusar de mentir porque estão todos ocupados com as próprias mentirinhas.

Em 1881, Carlo Collodi escreveu o romance As Aventuras de Pinocchio. O coitado do bonequinho sofreu pacas com as consequências de suas mentiras e a moral da história, que todo mundo sabe qual é, pelo visto não nos ensinou nada ao longo destes 135 anos! Ai, ai, se nariz crescesse de verdade…

Ah! O nome do filme é O Primeiro Mentiroso, de 2009.